sexta-feira, 4 de setembro de 2009

EL NIÑO: A receita da Confusão

Quando ele chega, tudo muda de lugar. Ventos que durante milênios sopravam num mesmo sentido passam a correr de trás para a frente. Chuvas viram secas, calor dá lugar a frio e o que era gélido começa a torrar. O responsável por tudo, o El Niño, é o primeiro indício descoberto pelos meteorologistas de que o clima pode mudar em escala planetária num período muito curto, praticamente de um ano para outro. Abaixo você vai descobrir como tudo acontece, o que a ciência sabe sobre ele e como os seus efeitos podem mudar o planeta.
O alarme veio dos sensores do satélite americano Noaa, o poderoso vigilante do clima do mundo. No dia 2 de março de , eles registraram uma manchinha de calor no Pacífico, a cerca de 100 quilômetros da costa do Peru. Como logo ficaria provado, ali estava o primeiro sinal de que o clima ia sair dos trilhos em 1991. Era um embrião do El Niño, que, tecnicamente, é exatamente isso: um aquecimento acima do normal das águas do Pacífico.

Em março, elas estavam só 1 ou 2 graus Celsius acima dos 24,5 que são normais. Em 15 de setembro, seis meses e meio depois, a diferença tinha chegado a 5 graus. E continuou subindo. E a manchinha no mar virou uma língua de calor, com quase 10 000 quilômetros de extensão por 2 000 de largura.

A rapidez da evolução do El Niño foi espantosa. No dia 9 de junho, o Cptec fez bonito: foi a primeira instituição do mundo a matar a charada. Foi ele quem anunciou que a manchinha de calor, que logo se transformaria na grande língua, era de fato a instalação do El Niño. Era quente, líquido e certo: logo viriam as inundações, tempestades, nevascas e secas.

Se o El Niño causa tudo isso, o que é, afinal, que causa o El Niño? A melhor resposta existente parece piada: o que causa o El Niño é uma gangorra. Sempre que a pressão atmosférica sobe no Oceano Índico, ela desce no Pacífico. E vice-versa. Notados há poucas décadas, o El Niño e a gangorra são traços milenares do clima. A gangorra intrigante, que foi ironizada quando anunciada pelo inglês Gilbert Walker, em 1928, não só era para ser levada a sério, como está na raiz desse hospício instalado no nosso planeta. Louco não foi o descobridor da gangorra da pressão. Louco mesmo era o clima.

Um jogo de empurra sobre o planeta

A peça-chave do clima planetário é um jogo de empurra que faz a pressão atmosférica subir num ponto e, ao mesmo tempo, descer num outro canto da Terra. É chamado de Oscilação Sul e, como faz uma aliança com o El Niño, os cientistas, agora, sempre falam no par El Niño-Oscilação Sul, ou Enso, que é a sua sigla em inglês. Hoje, é difícil descer num lugar do mundo onde o Enso não se intrometa.

Vamos lá. Pousando no Paquistão, em agosto, você presenciaria crianças com sede, arrastando as sandálias no chão rachado de tão seco. É que o Enso faz a pressão subir sobre o Oceano Índico. Traduzindo, faz o ar descer do alto da atmosfera para a superfície. Assim, empurra para longe a umidade das monções. E, sem esses ventos, não chega chuva no Paquistão.

Executivos esfogueados

Pulando daí para a Flórida, já no final do ano, você veria donas de casa na praia vigiando o horizonte. Torcendo para que o jogo das pressões despedasse os furacões lá no meio do Oceano Atlântico, bem antes de eles chegarem ao continente.

Corta para o Japão. A cena são executivos esfogueados, em dezembro, porque o frio não chega, apesar de ter passado da hora. É que a pressão empurra o ar para baixo, espalhando as nuvens. Aí, o sol bate direto e eleva a temperatura.

É por tudo isso que boa parte da massa cinzenta queimada pelos estudiosos do clima, nos últimos quinze ou vinte anos, foi consumida para investigar a dupla El Niño-Oscilação Sul. Foram tantos estudos e análises que os cientistas já viram uma lógica dentro da loucura, e com isso fazem até previsões. "Observando os sinais de que o Enso está se formando, pode-se antecipar as características do clima com antecedência de até dois anos", disse o secretário-geral da Organização Meteorológica Mundial, Godwin Obasi.

Os cientistas só não sabem dizer, ainda, qual é o gatilho que dispara o próprio transtorno. Há quem tente botar a culpa no efeito estufa, que é o excesso de calor provocado pela poluição industrial. Mas o Enso aparece em registros históricos, muito antes de existir indústria e poluição. Então, por enquanto, tentar forçar uma explicação só aumenta a doidice que já cerca o fenômeno. E aí, a loucura não é mais do clima. É da imaginação.

A gestação no Pacífico:
Compare o calor da água (vermelho) num ano em que não houve El Niño com dois anos que ele apareceu


15 de setembro de 1991: não há El Niño

16 de setembro de 1982: El Niño recorde

16 de março de 1997: começa o deste ano

15 de junho de 1997: quente e subindo

14 de setembro de 1997: empate com 1982

Dois jeitos de ser

Dentro da atmosfera, o ar circula junto à linha do equador como se estivesse encanado. Ele gira entre a superfície e o topo da atmosfera formando circuitos fechados, chamados células de Walker. Uma ao lado da outra, elas dão a volta ao mundo. Em 1928, o inglês Gilbert Walker viu que as células amarravam a pressão atmosférica entre dois oceanos: o Índico e o Pacífico. Se a pressão aumenta de um lado, ela diminui do outro, e vice-versa. Ou seja, se o ar pressiona o cidadão contra o solo de um lado, do outro ele sobe e alivia a força, do outro. O jogo das pressões corre pelas células e dá a volta ao mundo. Você vai ver, aqui, como esse jogo cria o El Niño.



Transtornos no bolso

O El Niño de 1982 foi o mais forte do século, até agora. Na América do Sul, quem mais sofreu foi o Peru. A pesca, uma atividade econômica chave, ficou prejudicada. As enchentes também atrapalharam o Uruguai, a Argentina, o Paraguai e o Brasil, na Região Sul. O Nordeste sofreu com a seca. O prejuízo total na América do Sul foi de 3 bilhões de dólares, e, em todo o planeta, 13 bilhões. Leia abaixo o custo dos desastres.

Enchentes

O prejuízo recorde, de 1,3 bilhão de dólares, coube aos Estados Unidos. O Peru e o Equador arcaram com 650 000 dólares, vindo a Bolívia em seguida, com 300 000.


Furacões

Causaram impacto bem menor. O Havaí pagou o maior preço, 230 000 dólares. Ao Taiti couberam 50 000. Os dois lugares ficam no Pacífico.



Secas

A Austrália perdeu 2,5 milhões de dólares. Vieram depois a África do Sul com 1 milhão, a Indonésia com 500 000, as Filipinas com 450 000. A América Central arcou com 600 000 dólares.




Efeitos colaterais daqui ao Japão

Confusões que os brasileiros já viram


Uma alteração típica provocada pelo El Niño foi o aumento das chuvas na Região Sul, durante o mês de agosto de 1990. Já na Serra da Mantiqueira e no litoral da Bahia caiu menos água do que deveria. Os termômetros subiram, em geral, 2 ou 3 graus Celsius no leste de São Paulo, no nordeste de Goiás e no sul do Mato Grosso do Sul. No centro da Bahia e no sul do Piauí o tempo ficou até 3 graus mais fresco. Daqui para a frente, todos concordam que vai chover mais no Sul e menos no Nordeste. Também vai ficar mais frio no Sul e mais quente no Nordeste.


Fonte: Revista Superinteressante de janeiro de 1991 (texto adaptado)

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